Por Luana Reis:
No final da semana passada, eu fui surpreendida com o convite para escrever um texto “sobre algo que ninguém escreve”, vindo da Nuta. O papo começou após um post crítico sobre a visão da mídia em relação a representatividade e estereótipos da mulher latina em diversos filmes e séries hollywoodianos. Repetidamente vistas como sexies, explosivas, empregadas e incapazes de falar inglês corretamente. Dentro desse contexto, acabaram surgindo diversas indagações, inclusive sobre quem se enquadrava no conceito latina.
Antes da gente se aprofundar no tema, é necessário entender a designação latina. Latino, ao contrário do que aprendemos, não é algo essencialmente geográfico (natural do Lácio; povo latino). O termo latino é para todos que tem sua língua materna derivada do Latim. Portanto brasileiros são latinos, assim como mexicanos, portugueses, espanhóis, italianos, etc… Não são latinas as pessoas cuja língua mãe descende do anglo-saxão-germânico e outras.
Esse é o uso correto do termo e a noção disso teoricamente deveria nos unir. Mas sem utopias: o fenótipo nos separa, assim como o colorismo. Por isso nós, mulheres negras, batemos tanto na tecla do racismo brasileiro ser baseado no fenótipo x passabilidade branca. Ou seja, quanto mais escura a pele, maior será o preconceito. É importante observar que o movimento de indentificação vem tentando virar o jogo ao incentivar que as próprias pessoas se reconheçam, já que o racismo e o colorismo se baseiam na visão do outro, no que ele determina, e nas permissões sociais; encaixando e dividindo pessoas num esteriótipo já determinado. O entendimento de quem somos nos dá poder para reconhecer e lutar contra isso.
As brasileiras aqui são basicamente vistas e separadas como brancas ou negras, com muitas designadas brancas sem nunca ter a oportunidade de entender de onde realmente vieram. As famílias raramente reconhecem sua descendência africana quando ela não é evidente. As etnias africanas são amplas e nisso resulta uma gama de tonalidades e biotipos, porém é preciso lembrar que não é possível fazer esse resgate corretamente. Não há registros, localidade, datas de nascimento e nem tampouco sobrenome de nosso antepassados escravizados.
Numa outra esfera, presenciamos o fenômeno do parente negro, geralmente na forma de uma avó que já morreu, quando é necessário mostrar o orgulho negro-que-não-se-é. Quando a pessoa deseja abraçar a cultura negra sem precisar se preocupar com quem faz parte dela. Essa pessoa precisa desesperadamente tapar o sol com a peneira, sem o inconveniente de se reconhecer como parte do problema. Nessa hora, somos todos mestiços. É o que denominamos de afro conveniência, problema constatado hoje na indústria musical americana. A atriz Amandla Stenberg, mais conhecida por interpretar a Rue de Jogos Vorazes, é uma excelente porta-voz dessa questão e fala com uma propriedade incrível. Vale a pena ouvir um pouco do que ela tem a dizer! O grande problema dessa mestiçagem-conveniente é que ela não vale na hora do emprego e nem na da batida policial – essa, aliás, nunca erra! É interessante lembrar que pessoas negras também tem parentes brancos. E geralmente vivos. Todavia, nós nunca deixamos de ser negros aos olhos dos outros e da nossa sociedade. E o mesmo se segue, em proporção, para hispânicos e latinos.
Já lá fora, não é bem assim que a banda toca. Existe pouca ou nenhuma vergonha em passar o preconceito bem na sua frente e a separação racial é evidente, sem máscaras. Por biotipo, pessoas de pele morena-clara ou clara com cabelos negros sendo lisos ou levemente ondulados podem ser lidas como latinas e automaticamente determinadas como quase lixo e deixadas à margem. Sendo os latinos separados como um grupo sócio-racial, a essas pessoas não será dada a oportunidade de se reconhecerem de outras formas, nem tampouco preencher formulários de identificação da maneira que desejarem. Não são vistos como brancos nem negros e sim como um grupo à parte. Isso se torna uma questão pois, apesar de uma parte aceitar essa denominação e se reconhecer assim, haverá quem prefira ser identificado pela sua nacionalidade ou descendência. Na outra ponta, a pele branca, a fair-skin, é bem diferente e facilmente reconhecível. É notável que os estadunidenses terão certa dificuldade em reconhecer a qual grupo tal pessoa pertence se essa mesma fugir do estereótipo comum e, na mesma proporção, estará a necessidade de classificá-la. Para brasileiros, geralmente é a primeira vez que dão de cara com a discriminação de forma tão evidente.
Partindo desse princípio, voltamos a discutir a influência e a importância da mídia nessas relações. Não há perdão nesse ramo. As atrizes latinas e hispânicas (Espanhóis, povos descendentes da península ibérica, ibéro-americanos; mas erroneamente confundidos nos Estados Unidos com o biotipo ameríndio ou indígena), com tonalidade de pele mais voltado ao tom de oliva, são destinadas à papeis hiperssexualizados e pouco inteligentes. Ou muito fúteis, ou o extremo oposto sem nenhuma vaidade. Não há complexidade nesses personagens, nem variações de humor, leveza, coollness e a noção de crescimento pessoal no final da trama. São sempre participações secundárias ou intermediárias que quase nunca levam à premiações. As latinas, em especial, servem como objeto de conquista do personagem masculino principal.
Sempre com sotaque, elas dão uma ajudinha aqui e ali, mas sempre terminam em alguma armadilha para que possam ser resgatadas. Acontece o óbvio romance e depois cada um vai pro seu lado. Ethan Hunt, interpretado por Tom Cruise em Missão Impossível é o perfeito exemplar que afirma a masculinidade e o fato de – vejam só – não ser preconceituoso se envolvendo com uma minoria em cada filme. Mas é possível observar que na mesma série, a esposa a quem ele ama e protege, além de ser frágil e com profissão nobre é branca de olhos claros (Michelle Monaghan). Bota fé! Pode ver de novo e prestar atenção! Rsrs Um outro exemplo que eu gosto de trabalhar é o da não-branca Jessica Alba. Dona da belíssima The Honest Company, pouca gente lembra que ela já foi a antagonista de Drew Barrymore em Nunca Fui Beijada. Mesmo sendo uma excelente atriz, é evidente o clareamento de pele e cabelos para conseguir melhores papéis. Os bons personagens são destinados às mulheres brancas de traços europeus, ou a quem se faça passar desta maneira. Isso tudo, é claro, quando é dada a uma mulher a oportunidade de protagonizar uma história.
Ainda nesse contexto, um caso interessante que vale a pena relembrar é o da personagem Katniss Everdeen, descrita no livro como olive-skinned, mas interpretada por Jennifer Lawrence. Numa linha semelhante, segue a “polêmica” da escolha da atriz Noma Dumezweni para o papel de Hermione Granger, anteriormente interpretado por Emma Watson, para a continuação da história nos palcos. A autora JK classificou a discussão como idiota, uma vez que ela afirma não ter descrito Hermione como branca. O primeiro livro da saga é claro: Olhos castanhos, cabelos crespos e dentes acentuados. Logo, características negras. A escalação de Emma, apesar de sua excelência como atriz, a descaracterizou. Tanto foi que adiante nos livros, após o lançamento do filme, existe uma passagem que fala sobre “a sua cara branca escondida atrás de uma árvore”. Precisamos nos perguntar porque isso acontece e entender que essa descaracterização dos personagem contribuem para um certo Apartheid no cinema e na TV, que se reproduz inconscientemente na nossa realidade.
O Oscar desse ano teve essa discussão como pano de fundo, inclusive sendo boicotado por grandes atores, mas sem ter o eco necessário nem receber a devida atenção. É claro que as latinas são inclusas nesta mesma onda de segregação e a consciência geralmente só chega quando bate na nossa porta. Das caracterizações de Cleopatra a Jesus Cristo, poucas são fiéis. Todavia, seguem firmes no imaginário coletivo. Desculpa se eu estiver estragando antecipadamente seu natal; mas historicamente falando, a chance de JC ser caucasiano de olhos azuis é zero.
Uma questão que eu identifico por aqui e acho bem engraçada é o “paguei minha ascendência familiar e não largo!” Rsrsrs Muito comum em descendentes da Alemanha e da Itália, principalmente. Não me entendam de forma equivocada, por favor. O resgate cultural familiar é tão importante e bonito quanto manter viva antigas tradições. Esse é um tipo de beleza ausente no mundo que precisa ser preservada e quando é dessa maneira, é excelente! Mas a maioria usa infelizmente de certa desonestidade, por assim dizer, para se distinguir do lugar comum. Essa ancestralidade acaba servindo ao propósito duvidoso de se diferenciar, não precisando ser brasileiro de fato e assim propagando alguns preconceitos. Essas falas servem para se esconder sob a máscara de outra nacionalidade, não exercendo a cidadania plena e a reflexão sobre a responsabilidade social local. Por isso, entendam: Se sua família está aqui há mais de três gerações, prosperou aqui, criou os filhos aqui, chama essa terra de lar e você entende o português como sua primeira língua – darling, aceita! Você é brasileiro, latino-americano. A história desse país é SUA história. Portanto, participe dela, orgulhe-se dela! Mas também repudie nossos erros e os problemas que não conseguimos sanar até hoje. Você é parte do problema, mas também da solução. Instigar a síndrome de vira-lata não vale! O que vale é o comprometimento.
Velhos padrões precisam ser repensados para que possamos dar voz, lugar e papel para que verdadeiras mulheres possam finalmente se ver. Para que elas possam se enxergar no alto de sua complexidade, excelência, poder e capacidade. O caminho de se entender que se é único.
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